quinta-feira, março 20, 2014

Dia internacional da felicidade - reprise II

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Uma representação fantástica da felicidade; um  momento de antologia da 7ª arte.

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Será que a risada alegre e descontraída do baiano que acabou de tomar o seu chopinho e de comer caranguejo é do mesmo nível do suspiro beatífico do fleumático britânico que acabou de ler o " Times "?(...)

Diário de Notícias,13 de Setembro de 1990 - Romeu de Melo.

Romeu de Melo assinou neste dia um texto magnífico sobre o sentimento ou o estado de espírito que mais radicalmente concerne à existência humana: a felicidadeMas ao qualificar assim a felicidade, Romeu de Melo adiantava também que esta não seria de todo a resposta mais adequada e normal ou até mesmo a mais civilizada que a chamada moral oficial tacitamente daria. Para a cultura dominante, severamente dissimulada nos seus artifícios, os valores da honra e da abnegação, do espírito de sacrifício e da coragem, entre outros rutilantes apelos à emulação, seriam a causa e a bandeira que todos deveríamos heróica e humildemente abraçar e jamais a felicidade, essa febre nefasta que enviesa o espírito dos homens no cumprimento da sua realização - aqui, onde todos os homens labutam, não se dança .
Visto deste modo, o discurso normal e institucionalizado, aquele a que se atribui valor e que é tido como mentalmente saudável, produtivo e que funciona, parece ter-se esquecido olimpicamente da alegria dos homens. Nem a própria Filosofia, que é sempre tão lesta a escalpelizar tudo o que  mexe no mundo das ideias, consagrou sequer uma disciplina ou mesmo apenas um capítulo à felicidade humana - a investigação da sua natureza, a análise das diferentes formas que assume o seu desvelar, a maneira de a podermos alcançar e de a perpetuar, etc. 
Mas não obstante esta retórica castradora dos altos princípios, a ideia de felicidade sempre esteve presente no horizonte das pessoas. Basta olhar para a cultura popular para nos darmos conta de imediato da importância e da frequência com que a felicidade entra e está na vida do povo. Ela está presente nas declarações amorosas, nos votos que formulamos de bem-querer, nas letras das canções, nos "happy-end" dos romances e das novelas e , naturalmente também, talvez por "lapsus intelectualis", nas confidências que vamos fazendo uns aos outros no paleio distraído de todos os dias.
Por que razão a felicidade nunca foi tomada como um assunto sério ? Bertrand Russel e uns quantos poucos " outsiders" da história do pensamento confessional ainda burilaram alguns opúsculos sobre o tema, mas de facto a felicidade continua ainda a ser considerada com uma questão menor, do foro íntimo e bastante subjectivo, fora do âmbito do conhecimento racional e, por isso, perfeitamente dispensável - habitualmente opta-se por retirar seriedade a matérias cujo tratamento releva do " imo ". A um nível cultural elevado, a felicidade é mesmo encarada com desconfiança.
Neste quadro tão indecoroso para a afirmação da alegria e da festa, como poderá o homem ser feliz? A sociedade parece que se devotou a uma esperança que apenas privilegia uma amarga desilusão. Todavia, este estoicismo oficial, como não poderia deixar de ser, ao não colar com os anseios mais fundos do homem, não conseguiu trazer-lhe paz nem sossego. Bem pelo contrário, aquilo que a encomenda trouxe no seu bojo foi somente infelicidade, existências tristes e amorfas. Que interessam a verdade e a justiça, a razão e a liberdade, se o preço de tudo isto for uma obrigação sem fim à vista; se o clímax for aparentemente inalcançável e duvidoso; se as demoras constantes e renúncias a que o homem se sujeita para alcançar a glória e a fama ( momentos de felicidade ), o fazem perder o pavio; se os constrangimentos , compromissos e condicionamentos a que ele se submete para se realizar ( dizem ) apenas refinam o seu tédio e inquietude? Enfim, uma vida sem alegria e sem esperança.
Mas não me parece que seja só a lenga-lenga dos épicos princípios o elemento perturbador que anestesia a doce ilusão da felicidade. O problema que aqui se trata é na realidade mais fundo e complexo, uma vez que se encontra soterrado nos abismos mais negros da alma humana. De quanta terra e tempo precisa o homem para atingir o insuportável aborrecimento existencial? Depois de adquiridos e fruídos todos os bens e serviços à sua disposição que provocaram a tensão, que resta ainda ao homem senão um grande e desesperado bocejo? 
Na realidade, não somos assim tão regular e facilmente bafejados com lampejos de felicidade, como infelizmente se constata, mas ,contraditoriamente, quando ela chega, na melhor das hipóteses apenas serve para nos dizer que a vida que tivemos até aí foi uma desgraça e que ( por muito que nos custe ) após a sua fugaz revelação, a nossa existência vai continuar na mesma, a percorrer o caminho de Sisifo - a felicidade é isto e tão-só: uma pausa que refresca ante a próxima calamidade. Urge, pois, continuar a batalhar e a batalhar  sempre ( e infelizmente a penar também ) para conseguirmos, nem que seja por breves instantes , voltar a saboreá-la.
É por isso também que a riqueza, o poder e a notoriedade não serão, por ventura, o caminho mais directo para atingir a felicidade. Nem sequer a sabedoria, a bondade ou o talento. Mesmo a saúde, que é tão fundamental à satisfação do homem, não será sinónimo de felicidade. Em suma, parece que a felicidade não é coisa deste mundo. Enfim, quer-me parecer que o léxico experimental da vida resolveu entender e explicar este sentimento - a felicidade - como sendo a consequência de um estado psíquico complexo em que as necessidades físicas e emocionais estariam basicamente satisfeitas e convergentes num ponto de equilíbrio. Seria assim como um momento homeostático espiritual,  onde a ansiedade, o desconforto e a dor se encontrariam ausentes ou dominadas, e o bem-estar, a serenidade e a plenitude os elementos psíquicos prevalecentes. Em suma, a felicidade parece ser um breve momento de descolagem deste horroroso continuum existencial, um estado de bem-aventurança episódico e excepcional.