quinta-feira, julho 03, 2014

Hipocondria

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Tenho para mim que a partir de uma certa idade, depois de passado, obviamente, o período do vigor e das patologias facilmente ultrapassáveis, as idas ao médico  passam a ser revestidas de uma gravidade inusitada, porque mais sérias e preocupadas, senão mesmo apavorantes e fóbicas. 

De facto, quer para cumprir o ritual de vigilância e despistagem habituais, através dos necessários "check-ins", quer por ingerência e temor infundido por algum sintoma ou sinal entretanto declarado e mal esclarecido, somado ainda ao peso nada negligenciável que uma ida ao médico representa sempre no nosso inconsciente, estas rotineiras visitas aos centros de saúde passaram a ser vividas e sentidas como um gesto estúpido de entrega voluntária no matadouro, um gesto de conformada resignação. 

Para além, claro está, do incómodo e da paciência que temos de ter para não sucumbir à teatralização da dor, sempre em cena nas salas de espera deste país. De facto, no íterim do atendimento e fazendo os possíveis por iludir a tensão com os pensamentos escapistas do costume, somos obrigados, impotentes,  a ouvir os sempre indesejados testemunhos cruciantes, uma ladainha de esconjuro que de todo dispensaria. Se de um lado é o desfiar de um rosário de sofrimento e martírio, enumerando-se o número de intervenções cirúrgicas já tentadas para debelar a doença, do outro é a condenação de um corpo em chagas, violentado praticamente em todo o seu território não sobrando nem uma tirinha a evidenciar saúde. E quando por fim, depois daquela provação toda, saímos definitivamente do purgatório, extenuados e completamente deprimidos, com um salvo conduto nas mãos onde não se lê a palavra provisório, dizemos para nós que foi a última vez .

Em boa verdade, mina-nos a ideia de que ao sairmos do consultório médico, depois de lá termos entrado cheios de força e a vender saúde, fatidicamente sairíamos com o destino já traçado: uma doença enterrada nos contrafortes de uma pretensa jovialidade seria por certo encontrada, tal como acontece num acto de Vodu para destruir inapelavelmente a vida de alguém. 


Na realidade, se até ali a nossa saúde e, naturalmente, a nossa vida sempre se pautou, pese embora alguns acidentes de percurso, pelo propósito irracional de vivermos em descontraída eternidade, ignorando a velhice como antecâmara da morte, não seria por certo uma simples análise ao sangue ou á urina que iria afectar a nossa crença, colocando-nos dramaticamente perante as intermitências de um holocausto vizinho. Mas não é assim que as coisas se passam, nem assim que funcionamos. Quando já atingimos  a fase da decrepitude, quando os amanhãs começam a ser mais escassos que os ontem(ns), começamos também a dar mais crédito à Filosofia e a  interrogar-nos sobre o sentido de tudo isto. E o acto médico, quer queiramos ou não, reconduz-nos atavicamente para a arena das nossas perplexidades, com a neguentropia a calar mais fundo - quando pressentimos a besta a expiar-nos, ficamos perdidos, hipnoticamente paralizados. 

Em resumo, somos refractários a tudo o que exponha a nossa melindrosa integridade. Alimentamos a  ilusão de vivermos em harmónica normalidade, resistentes a qualquer tipo de praga ou doença num gesto dilatório que dispensa qualquer sentença médica ou dúvida assassina. Nada poderá destabilizar o nosso solar e uterino quotidiano.

Não queria terminar, no entanto, sem reconhecer obviamente que é o nosso instinto de preservação que  empreende estas manobras de diversão para fugir à  inevitabilidade - ocultação, engano, negação e fuga. Todavia, não podemos fugir de nós próprios. Afinal, o outro, o outro do outro lado do espelho, aquele que me olha desconfiado, sou eu próprio.


A terapia