domingo, outubro 12, 2014

Lar(go do)Casal

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Com o fim do Verão, que não chegou a passar do papel, porque invernoso e cheio de contradições, e a chegada de mais um intrépido e ameaçador Outono, igual aos dos últimos anos, com chuva copiosa e ventos atlânticos uivantes, uma inebriante e temperada nostalgia apoderou-se de mim. Talvez porque os "ontens", no computo geral do deve e haver existencial figurem aí destacados, sem margem para grandes dúvidas, e também por aquilo que aparenta ser o chamamento dos arquétipos para voltar, nem que por breves instantes, a um passado, a um tempo em que, na realidade e apesar de tudo, fui feliz. 
O fim das tardes nesses verões bonançosos de então era anunciado pelo grinfar estridente das andorinhas que, em voos rasantes e vertiginosos, se aproximavam dos beirais das casas onde cautelosamente escondiam os ninhos. Quando o crepúsculo começava a insinuar-se mansamente no horizonte e os simples regressavam a casa, após mais uma jornada de trabalho, aquela música celestial entoada pelas andorinhas era como que um bálsamo e o prenúncio de paz que descia acolhedora sobre a vila. Nesses momentos, sentado num banco do largo da minha meninice e adolescência, observava e sentia o pulsar da vida e o ritmos da natureza de uma forma quase encantatória, talvez resgatados para efectuarem a simbiose quase perfeita no meu ser. Era um sentimento tão grande de plenitude que quase poderia dizer, muito embora todas as limitações materiais de que carecia, que não podia aspirar a mais senão àquele gratificante momento de iluminação interior. 
Ainda recordo com saudoso prazer os pormenores da interacção das gentes que viviam e deambulavam pelo que hoje é conhecido por Barreiro velho, e os pequenos detalhes, muitas vezes quase invisíveis que compunham o cenário daquela mundovidência, todo ele associado , como não poderia deixar de ser, a um tempo de miséria , por vezes uma miséria remediada que a vida , e sempre ela, de forma mais dramática ou menos dramática se incumbia de levar por diante. Lembro-me, por exemplo, das casas com as portas abertas ao entardecer, para arrefecer os efeitos da canícula do dia; lembro-me da grita da criançada, sempre entretida nas suas brincadeiras pueris intermináveis, e também dos ralhetes dos adultos, que ao longe se confundiam com a música que jorrava das telefonias em altos decibéis. Para já não falar, obviamente, dos aromas inconfundíveis da janta que se desembaraçavam furtivamente das cozinhas para provocar o palato da vizinhança, como de costume, sobretudo o cheiro a peixe frito ou o cheiro inconfundível dos assados, nomeadamente da sardinha e dos pimentos, que das kitchenettes improvisadas no passeio das ruas era lançado para o ar pelos fogareiros a carvão e que a brisa da tarde se encarregava de espalhar provocadoramente pelo burgo fazendo salivar até os mais empedernidos. 
Esses ecos do paraíso perdido continuam ainda a reverberar dentro da minha cabeça transportando-me, por vezes, melancolicamente, para o aconchego já longínquo da casa materna.