sábado, outubro 18, 2014

Talvez a Lógica não seja bem uma batata

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Quando uma pessoa entra no seu último terço de vida, particularmente a partir do momento em que toma como verdadeiras as trombetas do Apocalipse, ou seja, que o despontar de um maior grau de sofrimento e de regularidade na doença aproxima-se a passos largos, começa também a olhar para o futuro com maior severidade, talvez até com excessivo zelo hiperealista e a adoptar , por consequência, padrões de comportamento mais cautelosos no que toca à sua integridade física com o intuito de prevenir ou minorar , tanto quanto possível, as contigências sempre peregrinas das tais surpresas indesejáveis. O que é certo é que apesar daquilo que fazemos nesse sentido e sem que muitas vezes se preveja, somos confrontados irremediavelmente com a inevitabilidade. Enfim, deixámos de fazer uma vida despreocupada e prazenteira, que até aí tínhamos levado, aparentemente sem limitações e condicionamentos, por causa da Besta. Deixámos, por exemplo,  de acompanhar com tanta frequência os nossos amigos naquelas saborosas e sempre bem dispostas petiscadas, para não ficarmos atemorizados com a eventualidade de isso vir a contribuir para o aumento dos índices de colesterol ou da glissémia, ou porque o sal, sempre tão generoso naqueles temperos que compõem os pratos da nossa perdição poderem vir a descontrolar de vez a nossa tensão arterial e fazer despertar mais uma vez a Besta. Em suma, passámos a fazer uma dieta mais restritiva, mais insonsa, no sentido literal e metafórico do termo, para nos resguardarmos do inefável infortúnio; passámos também a privilegiar os aborrecidos e, na maior parte dos casos, solitários circuítos de manutenção, quando desejaríamos, na verdade, estar tranquíla e sedentariamente a beber umas bejecas ou a tomar um reconfortante whisky com os amigos, a trocar umas quantas balelas, no final de um dia de trabalho. Bom, em última análise, passámos a não viver para termos, contraditoriamente, mais tempo para viver - não vivendo. Para quê? Porque carga de água deixamos de atender ao bulício e ao fervilhar da vida que tão pródiga é, e que para a qual parece todos estarmos vocacionados?
Vem tudo isto a propósito do facto de me ter sido detectada uma ligeira insuficiência respiratória, que já me trazia preocupado à algum tempo, num exame que fiz da especialidade. Segundo a informação médica, constante do relatório do exame, esta patologia resultaria da circunstância de ter sido fumador durante largos anos, mesmo depois de lhe ter dado sumiço à uma década. As sequelas daquele gesto "tão gratuíto", a que me "obrigava" todos os dias e a todas as horas ( excepção feita ao período do sono, claro ) com especial relevância para o final das refeições, em que o cigarro aparecia de modo imperial para rematar o repasto, como a cereja no topo do bolo, ou então imprescindível, para simbioticamente cumprir o ritual do café, já que sem ele a cerimónia parecia não fazer sentido,  tiveram um custo enorme, pelos vistos, na saúde, muito embora tivesse tido a ousadia, mas já muito tarde, de desafiar e pôr termo a este nó górdio. 
Muitas vezes penso sobre o que  na realidade me levou àquele momento zen, ao momento em que o ego ou o superego decide manietar o id e dar por terminado o pacto de morte que  até aí  tinha assinado  com o tabaco. Qual foi o momento em que tomei a decisão de parar com aquele lento e assistido suicídio? Não sei. Quando é que eu consegui derrotar-me a mim mesmo na arena esquizofrénica da realidade? Pois quem sabe. O que eu sei é que por várias vezes, preocupado porque  o corpo já começava a evidenciar alguns sinais de corrupção, tentei acabar com este hábito lamentável, mas infelizmente sem nenhum êxito
Naturalmente que este exame de consciência não é consequência de nenhum arrependimento ou penitência ( factos são factos ), nem é qualquer tipo de libelo acusatório contra desconhecidos, até porque fiz parte de corpo inteiro da categoria de fumadores ( e como os compreendo tão bem ), esta recensão é apenas e tão-só o resultado do maravilhamento que sinto com o curioso mecanismo autónomo de decisão que albergamos dentro de nós, sem que disso  nos apercebamos e que , neste caso, resolveu acabar com a sina. No fundo, este mecanismo está relacionado com a liberdade que nos assiste, mas para a qual a razão  ( quem diria ) não mete prego nem estopa.   
Não resisto, por isso, a partilhar um texto de autor desconhecido sobre esta temática, que fala exactamente das nossas contradições. 

( ... ) Como e por que razão chego efectivamente a realizar as escolhas que faço? Em que medida é que eu - ser "livre" - controlo essas escolhas? Veja-se , por exemplo, o caso da decisão de deixar de fumar. Toda a minha capacidade racional diz-me que fumar é prejudicial à saúde. E talvez até me convença que estou a agir com base nesta decisão prometendo a mim mesmo largar amanhã ( suponha-se ) o tabaco, ou adoptando algum estratagema, como a hipnose ou a acupuntura. Mas os efeitos do estratagema duram pouco e o " amanhâ " está mais longe. Por isso, continuo a agir contra a razão, decidindo agir contra ela toda a vez que acendo um cigarro. Mas um dia deixo realmente de fumar.
Certa manhã, sem que haja aparentemente nenhum motivo para isso, pego no maço de cigarros mas deixo-o novamente no lugar sem que tenha tirado algum. Escolhi parar. Fiz realmente a minha escolha e agi de acordo com ela. Mas por quê? Por que razão desta vez? Em termos reais esta recusa não tem uma resposta definida. As respostas definidas ( onde impera a razão e a lógica ) são estruturas clássicas de compreensão e de explicação. Estas respostas indefinidas surgem exactamente depois do momento da escolha, e a lógica não faz escolhas, ao contrário, são as escolhas que dão origem à lógica ( justificação  do acto ou do gesto).
Ao fazermos uma escolha temos uma razão, uma razão que a nossa lógica então utiliza para explicar essa escolha. Mas qualquer outra escolha teria sido associada a outra razão que saciaria, da mesma forma, a sede de explicação lógica. Direi às pessoas que deixei de fumar "porque" sabia que me era prejudicial à saúde. Da mesma forma que, se não tivesse conseguido deixar de fumar, diria "porque" não tenho vontade ou "porque" precisava do cigarro para aliviar a tensão, ou simplesmente "porque" sim. Estes porquês que utilizo para justificar a minha escolha dizem algo a meu respeito, enquanto pessoa, mas não determinam a escolha em si. Mas seja qual for o significado da minha escolha e o que ela revela a meu respeito, a escolha em si precedeu a todos os "porquês". Foi feita num momento de liberdade, no que Kierkegaard chamaria um " salto de fé ". Não obstante, fui eu que , para todos os efeitos, fiz a escolha, eu que , por algum estranho tipo de diálogo entre a indeterminação de que sou feito e a indeterminação das escolhas possíveis, de facto, decidi parar. E tal escolha é da minha inteira responsabilidade e de mais ninguém. Este é o terrível fardo da liberdade, pois ela faz-nos responsáveis por escolhas sobre as quais não temos o pleno controlo consciente, surgem de uma esfera do ser que aparentemente não responde perante ninguém. Como diria Kierkegaard, limitamo-nos a levantar e a proceder à sua identificação. Ou, como diz Orestes em " As moscas " : " Repentinamente, saído do nada, a liberdade caiu com estrondo em cima de mim "( ... )